1.
Uma mulher passeia com dois
cachorrinhos. As cordas ligadas às coleiras são bem compridas, permitindo que
os animais farejem o chão com mais desenvoltura. É uma cena sem maior apelo,
tem tudo para ser apenas uma das tantas ocorrências corriqueiras do cotidiano,
daquelas que serão imediatamente pulverizadas da memória de quem dedicou a elas
um olhar de relance. Ocorre que um clima pesado a diferencia. Há alguns
elementos de tensão que a envolvem. A mulher olha para um ponto fixo e começa a
puxar as cordas para os cachorrinhos ficarem mais próximos dela. Vem vindo uma caminhonete
branca a uma velocidade considerável. É para ela que a mulher aponta seu olhar
de apreensão. Com uma das mãos, faz um sinal repetitivo. Pretende mostrar que
no chão há uma faixa de pedestre parcialmente apagada. A caminhonete avança sem
diminuir a velocidade. A mulher então puxa novamente as cordas para que os
cachorrinhos fiquem à sua frente, de um jeito que os deixa parecidos com o pano
vermelho de um toureiro. O touro, no caso, é a caminhonete branca que se
aproxima com fúria, com pressa, passando a centímetros da mulher e dos
cachorrinhos. Atônita, a mulher se vira para a traseira da caminhonete que
agora se distancia e mais uma vez faz o sinal apontando para a faixa
semiapagada. Mesmo já longe, dá pra ver que o motorista da caminhonete levanta o
braço para fora da janela e também faz um sinal. Com o dedo médio da mão.
2.
O pai pisa no degrau da escada
rolante. A filha adolescente vai atrás. Conforme os dois vão subindo, o pai começa
a esbravejar. O tom da bronca aumenta na proporção em que a escada os eleva. Os
gritos têm alguma coisa a ver com gastos no cartão, alguma despesa indesejada.
O fato é que em cada canto da loja de departamento, qualquer um é alcançado
pela onda sonora feroz. Mesmo que não queiram, os clientes são obrigados a
conhecer detalhes do que o pai vocifera contra a filha. E todos se entreolham,
concordando em silêncio que aquilo é um disparate. A filha, braços cruzados e
olhar caído, certamente deseja que a escada rolante, por demais vagarosa, a
leve para longe dali.
3.
Na padaria, uma mulher caminha de um
lado para o outro portando um garfo descartável e uma pequena bandeja de isopor
sobre a qual há a terça parte de um pedaço de torta. É um mistério para mim o
que ela quer. Pelo que interpreto da cena, a cliente vai sendo empurrada de
funcionário em funcionário, sem que ninguém saiba resolver sua demanda. Em
determinado momento, ela perde a paciência e se dirige ao caixa com a torta
semi-consumida a tira colo.
—Tem que ter paciência – ela
desabafa.
— De Jó – complementa a caixa.
Ao atravessar a saída da padaria, a
cliente deixa um recado:
— Eu só acho que se as pessoas não estão
satisfeitas no trabalho delas, elas têm que procurar outra coisa pra fazer.
4.
Na internet só se fala numa coisa: a
guerra (re) começou.
5.
Nem sinal do gengibre que não costuma
faltar neste supermercado. Recorro ao jovem agachado que remexe abacates numa
caixa. Pergunto se de fato o gengibre está em falta. Ele confirma e se
compadece da minha frustração. Agradeço e volto a fazer as compras. Depois, já
em outro ponto do supermercado, sou abordado por uma pessoa. É o jovem de cinco
minutos atrás. Ele me entrega um pedaço graúdo de gengibre e diz que o
encontrou depois de fazer uma varredura no estoque. Fiquei com cara de quem não
sabe como agradecer e talvez não tenha agradecido da melhor maneira.
Tudo isso se passou num único sábado,
7 de outubro de 2023. O placar do dia
foi quatro a um. Goleada. Ao menos não foi de zero.