Sábado. Tomo a rua bem na hora da
troca de turno entre escuro e claridade. É quando acontece o encontro entre
quem madrugou para ir ao trabalho e a turma boêmia devolvida pela noite. Mas
hoje sou só eu. Esta cidade já foi mais pontual.
Caminho pela calçada que ladeia um
hospital. É um caminho elevado, a ponto de estar no mesmo nível do segundo andar
constituído por quartos de atendimento. Olho para a janela aberta de um deles. Lá
dentro, alguém está deitado na cama. Consigo distinguir o volume da barriga.
Por trás dela um rosto se revela devagar como se fosse o sol nascendo acima de
um monte. O homem se esforça para erguer o corpo, fixa o olhar em minha direção
e do nada faz um aceno. Sim, é pra mim, só pode ser pra mim. A minha dúvida é
sobre se ele me toma por outra pessoa. Ou por outro tipo de ser. Talvez me veja
como um anjo salvador a quem acena na esperança de ser socorrido. Pode ser que
me veja como a inimiga das gentes para quem acena tentando negociar. Não sei, e
o fato de não saber me faz pensar que tenho dúvidas em responder todas as
questões que me fazem e, pior, que faço a mim mesmo.
Viajo. Na traseira do caminhão, os
olhos de Jesus são exageradamente azuis. Eles olham para o alto, procuram o céu
acima da rodovia. Por que será que os olhos são tão azuis? Qual é o motivo do
contato com os céus? O semblante de preocupação tem a ver com o paciente que
acenou para mim?
Por coincidência ou por algum sinal
enviado pelo sistema subliminar de comunicações supremas, não sei, volto a
encontrar Jesus, só que agora, desprovido de qualquer incumbência messiânica,
ele é o dono da padaria. Ao me servir uma caneca de café com leite pergunta o
que quero comer. Respondo que ainda não sei. Seu Jesus faz cara de impaciência
e indaga como alguém não sabe o que quer comer. Em seguida, argumenta que não
saber o que quer comer é um tipo de privilégio. Já eu acho que é um embaraço, é
confessar a ignorância inconcebível da vontade. Você tem fome de quê? Não sei.
E é nessa de inspecionar janelas
abertas que avisto a cara de um cão de pelos brancos. As orelhas em pé, a boca
escancarada de onde pende uma língua inquieta, ele olha apreensivo para a
esquina. Toda vez que aparece um carro ou uma pessoa, sua vibração explode em
um entusiasmo de criança. A dúvida para ele é um elemento mágico. O momento pelo
qual desconhece o que está por surgir na esquina é a alegria que o captura em
um transe, o tipo de sensação de não se importar com nada mais em volta. O não
saber é uma satisfação. Ao contrário do meu caso.
Volto a caminhar pela calçada que ladeia
o hospital. A janela continua aberta, mas agora o quarto está desocupado. O que
pode ter acontecido eu não sei.
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