— O que é que tá escondendo aí?
Corri para a janela e a primeira
coisa que vi foi um rapaz com os braços para o alto depois de ter saído de trás
da árvore. Enquanto descia um pequeno barranco, obedeceu às ordens para abrir
bem a boca e suspender a camiseta, deixando a cintura à vista. A voz que me havia
atiçado a curiosidade voltou a trovejar:
— Tem droga dentro dessa bolsa?
Quepe, óculos escuros, a farda
vestindo um corpo avantajado. O dono da voz, policial que poderia se passar
perfeitamente por personagem caricato de um esquete do Porta dos fundos, estava
parado ao lado da porta do carona recém-aberta. O azul claro das viaturas da
polícia militar fluminense não tem o tom do azul da Guanabara nem do azul do
céu do Corcovado. Suas luzes agitadas eram dispensáveis sob o sol do meio-dia.
De costas para onde eu avistava a cena, havia outro policial parado ao lado da
porta do motorista.
Negro, magro, camiseta branca em que
se lia Nike air, bermuda, chinelos de dedo, o rapaz falava baixo, mas ao mesmo
tempo se empenhava em afirmar a inocência. Dizia ser andarilho e que na bolsa
largada no chão só havia roupas. Pró-ativo, levou-a até o policial que estava
parado ao lado da porta do motorista, não se descuidando dos movimentos
executados com extrema precaução.
O policial colocou a bolsa em cima do
capô da viatura, abriu-a e começou a retirar dela roupa por roupa. Estavam
todas bem dobradas, não resistindo, porém, à bruta inspeção. Logo já eram um
punhado de tecidos amarfanhados. De repente, um objeto se destacou entre a
pequena bagagem.
Após ajeitar o fuzil no ombro, o
policial da porta do motorista entregou seu achado ao colega. Por trás dos
óculos escuros, os olhos fixaram-se na carteira de trabalho. A mão estabanada
folheou página por página, tendo se detido em uma delas. Em seguida, o policial
da porta do carona aproximou-se do rapaz e lhe mostrou a carteira de trabalho
aberta.
— Tu é esse aqui?
— Sou eu.
— Mas esse aqui tá gordo e tu tá na
capa do Batman — concluiu o policial sem esperar justificativa — Usa crack?
— Não, não — duplicou os nãos o rapaz
na tentativa de ser convincente.
— Tem passagem?
Como se quisesse espantar de si uma
maldição, o rapaz balançou a cabeça negativamente.
E enfim não havia mais razão para o
procedimento continuar. Um alívio para o rapaz, para mim e, quem sabe, também
para os próprios policiais, que, ao saírem com a viatura, deixaram uma advertência
enigmática:
— Vai pra casa. Não fica na rua, não.
O rapaz foi acometido pela sensação
de alheamento que sucede um episódio de trauma. Sentou-se em uma mureta baixa e
com a expressão perdida se pôs a arrumar as roupas dentro da bolsa. Por várias
vezes precisou ajeitar o volume dentro dela, de maneira a fazer correr o zíper.
Depois, improvisou as alças da bolsa nos ombros, transformando-a em uma
mochila. Ele então se levantou, olhando para os lados. Já desperto da apatia e
com as mãos desocupadas, escalou o pequeno barranco, foi para trás da árvore e
pegou do chão uma áurea, bojuda e portentosa jaca.
Carregava a jaca como se tivesse nos
braços um bebê. Tinha pressa. Escolheu um banco da Praça Noel Rosa e se sentou.
Usou as unhas para tentar romper a casca da fruta. Contudo, interrompeu o que
fazia. Voltou a olhar para os lados. Parecia avaliar se sua atitude era
suspeita ou não.
Livros do autor: Viva Ludovico e A vida é um sorvete derretido