Na lista repleta de opções rasuradas,
escolhi um x-burguer e pedi que ele viesse sem maionese e presunto. O garçom
titubeou, transparecendo certa recriminação por eu ter simplesmente desmontado
a combinação de ingredientes que alguém um dia elaborara com o intuito de
oferecer uma caprichada experiência de sabor e saciedade. A tempo de revisar
mentalmente o postulado de que os clientes – incluindo os que preferem levar
desvantagem – têm razão, o garçom recobrou os modos diligentes e saiu apressado
enquanto abanava o rosto com o cardápio, papel grandão, plastificado e com mais
emendas que a Constituição da nossa República.
Depois da primeira abocanhada, virei-me
e vi um cão que me observava com as orelhas em riste. Duas coisinhas sobre ele:
seu pelo era amarronzado, um marrom que só consigo comparar ao barro feito de
lama de terra clara. E o mais importante é que mantinha de mim uma distância
respeitosa. Ele sabia que se ultrapasse determinado perímetro poderia se passar
por inconveniente.
Segundo o profeta (e as camisetas de
souvenir), gentileza gera gentileza. E eu ouso acrescentar que compostura gera
recompensa. Arranquei um pedaço do x-burger e o deixei no chão, próximo ao pé
da mesinha instalada no calçadão. O cão avaliou minha atitude e se aproximou
devagar, vencendo a desconfiança natural que se deve ter com um espécime
humano. Depois de levar o pedaço para o exato lugar onde estava, saboreou com
gosto a generosa porção de queijo derretido, o pão de hamburguer, a carne, os
cubinhos de tomate. Tínhamos então estabelecido um trato silencioso. Repeti o
gesto por umas três vezes e ele também fez tudo igual, recolheu o pedaço, levou
para o lugar de costume, mastigou suave. Não é exagero dizer que dividimos meio
a meio a refeição.
Há quem teorize que os cães são
bajuladores sagazes. Fazem de um tudo para agradar as pessoas que os alimentam,
questão bem calculada de sobrevivência. Não sei, talvez sim, talvez não. Na
prática, o fato é que quando me restava o último pedaço do x-burguer, pensei em
deixá-lo para o cão, mas já não mais o vi no lugar em que ele, em conformidade
de como se desenvolveu nosso acordo implícito, havia pacientemente aguardado que
seus outros quinhões fossem depositados sobre o chão. Pouco depois, enquanto
caminhava pela rua, voltei a encontrá-lo. Ele dormia, mas acordou
repentinamente. Fizemos contato visual e ele me ignorou. Sua memória canina nem
sequer fez questão de preservar a minha imagem por alguns minutos. Até nisso
aquele cão se mostrou elegante, evitando que crescesse em mim a vaidade de
pensar que ele me devia alguma coisa.
Livros do autor: Viva Ludovico e A vida é um sorvete derretido