Peças de dominó de pé e na horizontal, uma atrás da outra. Na falta de comparação melhor, vai essa mesmo. É uma imagem fuleira para ilustrar o formato e a disposição de dez prédios que entre si formam ruas onde, aos sábados e domingos, uma combinação de sons anuncia a passagem do sorveteiro. Um assobio com notas desengonçadas, o barulho da buzina acoplada ao carrinho e o que parece ser um grito de guerra em língua estrangeira, tudo misturado, são a sua marca registrada.
É estranho
que eu, marmanjo, seja provavelmente o único por aqui a dominar informações
sobre o itinerário do sorveteiro. Nunca vi criança alguma cercá-lo,
persegui-lo, chamá-lo, nenhuma delas puxando a mãe ou o pai pela mão para ir ao
encontro dele, nenhum flagrante de pirraça feita em razão do picolé negado, vai
ver eu e o próprio sorveteiro somos tipos antiquados que já não dão conta das
atualizações frenéticas destes tempos que correm. Correm tanto que já começam a
tropeçar nas próprias pernas.
Tarde de domingo.
Ouço ao longe o sinal de que ele se aproxima. Resolvo então tomar as ruas que
cercam o bloco de prédios. Estou na esquina
entre uma delas e a perpendicular. Lá na outra extremidade vejo passar o
sorveteiro. Conheço outro dos seus métodos de trabalho: ele percorre as ruas em
zigue-zague. É por isso que me adianto pela perpendicular, caminho
paralelamente à lateral de um dos prédios e viro à direita. A parafernália
sonora que o antecede vai se avolumando. Avanço pela rua, no final da qual, se
estou certo, ele surgirá daqui a pouco. É o que acontece. A máscara vermelha
amarrotada no pescoço dá a ele aspecto de elegância involuntária. Pelos meus
cálculos vamos nos encontrar bem no meio da rua.
– Tem de
leite condensado?
Os olhos
dele se acendem. Provavelmente sou o primeiro freguês depois de muito tempo. A
satisfação com que responde que, sim, ele traz em seu carrinho picolés de leite
condensado é a expressão do reencontro com sua autoestima. Reconhecendo-se
necessário, sente-se à vontade para uma confidência.
– Sabe que
tive um sonho estranho essa noite? – comenta ele, interrompendo o ato de
levantar a tampa do carrinho.
Eu então o
encarei atento. Nunca se deve deixar de ouvir o sonho de alguém.
– Rapaz,
sonhei que os picolés tinham virado água. Todo o mundo ficava zangado comigo,
porque quando eu ia pegar o picolé, tudo era só água, e a água ficava mudando
de cor, cor de uva, cor de abacaxi, cor de chocolate. Nossa, que humilhação
danada! Ainda bem que foi sonho. O bom de sonhar coisa ruim é que você acorda e
desfaz o susto. Em compensação, sonhar coisa boa às vezes te ilude. Você acorda
e a coisa boa era só sonho.
Ele abre a
tampa do carrinho, não sem antes fazer um pequeno gesto de hesitação. Constata,
enfim, que os picolés estão intactos e sorri um sorriso menos de zombaria e
mais de alívio. Enquanto lhe entrego a nota de dois reais, uma baforada gélida
escapa e nos envolve, trazendo à memória a imagem do menino que se debruçava no
refrigerador da padaria e mergulhava meio corpo no recipiente gelado com a
missão de escolher muito rapidamente qual sabor de picolé compraria.
O
sorveteiro me deseja um bom domingo e imediatamente reinicia a emissão sonora
que lhe é tão própria. Segue seu percurso, vai se afastando. Quando perto de
virar a esquina, ele passa a compor uma imagem digna de registro. Atrapalhado,
acumulo nas duas mãos o picolé e, na posição horizontal, o celular com o qual
pretendo tirar uma foto do sorveteiro inserido na atmosfera alaranjada do
entardecer de inverno. Permaneço imóvel e concentrado. Estou prestes a captar o
momento exato em que um raio de sol incidirá no carrinho. Não vai derreter. Vai
brilhar.
Livros do autor: A vida é um sorvete derretido e Viva Ludovico