Desmascarado


Fui com a cara, com a coragem, com a máscara e com o cabelo crescido, tão descontroladamente crescido que recebeu do barbeiro o seguinte diagnóstico: 

— É, já tava na hora, né!?

Barbeiro das antigas, sua altura, ou a falta dela, servia de inspiração para o apelido e para o nome do estabelecimento, Barbearia do baixinho. Pediu que eu me sentasse no cadeirão típico das barbearias e depois, num movimento parecido ao do pescador que joga sua tarrafa para bem longe, cobriu-me com uma capa branca, de mim só sendo visível o pescoço para cima.

Havia na barbearia outros barbeiros que cuidavam de seus respectivos clientes, todos mascarados, mas deixemos que eles fiquem na condição de meros figurantes da cena, importando destacar a mulher que entrou dividida entre carregar um bebê no colo e abrir a porta da barbearia. Ela usava uma máscara colorida com desenhos da galinha pintadinha, e o bebê, criaturinha portadora do passaporte especial dos imunizados, era o único no recinto com o rosto completamente à vista. Baixinho me pediu licença e foi até onde estavam os dois. Pelo que entendi, a mulher era sua filha, e o bebê, seu neto. Através do espelho, vi que ele fazia palhaçadas para tentar arrancar um sorriso da criança. Não conseguiu. Ao retomar o trabalho, estava visivelmente frustrado.  

Cortar, aparar, raspar são serviços quase sempre acompanhados pelo bônus consistente no que os barbeiros desenvolveram como elemento tradicional ao ofício: a conversa. Como se se dirigisse a um velho conhecido, Baixinho tratou de manifestar seu ponto de vista sobre a conjuntura da epidemia.

— O brasileiro não tem disciplina. Ninguém sabe usar direito a máscara.

Mal terminou de falar e teve um insight. Parou o que estava fazendo e quando olhou para o espelho deu de cara com seu reflexo a lhe mostrar que a máscara só tampava a boca, deixando de fora o nariz.

— Tá vendo só?

Ele disse isso não sabendo exatamente a reação escondida por detrás da minha máscara. Seu comportamento não era tanto de embaraço, mas mais de orgulho pelo fato de que sua tese havia se comprovado de imediato e bem à frente dos nossos olhos. Aí está o homem em demasia, acerta, erra, tem razão por estar certo de que está equivocado.

Um tempo depois e só o que restava sobre minha cabeça era uma camada de fios curtos, de um jeito que dava pra notar alguns pontos de clareira. Minha calvície não será do tipo que avança pelas entradas da testa, e sim daquelas em que o cabelo começa a minguar em áreas espalhadas do couro cabeludo. Para isso existe solução, pelo menos é o que Baixinho me assegurou, inclusive explicando como é o tratamento. Falou ainda sobre futebol, política, comportamento e religião, ocasião em que pegou uma bíblia guardada na gaveta abaixo do espelho. Ao encontrar uma página previamente marcada, anunciou o versículo e leu o seguinte trecho: “Agora, filho do homem, apanhe uma espada afiada e use-a como navalha de barbeiro para rapar a cabeça e a barba. Depois tome uma balança de pesos e reparta o cabelo.”

Sim, demorou, mas enfim o trabalho ficou pronto. Antes mesmo de me desvestir a capa branca, Baixinho se deslocou apressado até uma das cadeiras que serviam para a espera dos clientes, lá onde estava sentada sua filha com o neto no colo. Postou-se então na frente dos dois e retirou a máscara do rosto. O menino, até aquele momento amuado e manhoso, se iluminou por efeito de uma gargalhada contagiante, se é que esse seria o melhor adjetivo em tempos como estes. Foi bem rápido. Movido por um impulso de urgência, Baixinho recolocou a máscara, inclusive tampando o nariz. Ao voltar para perto de mim, estava visivelmente satisfeito.



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