Foi-se o tempo em que o nariz entupido era uma
insignificância, um incômodo banal. Foi-se o tempo em que uma dor de cabeça
fraquinha era só uma dor de cabeça fraquinha. Nesse tempo, tossir quase sempre
não passava de um ato involuntário, mecânico, imperceptível como um cacoete.
Nesse tempo recente e também já distante, coçar os olhos, meter o dedo na boca,
apertar distraidamente a mão de alguém não trazia à consciência o peso de ter
cometido um pecado sem perdão. Nada disso hoje permanece indiferente ao alerta
paranoico ou não da preocupação sobre sintomas e diagnósticos. Penso nesse
tempo com saudade e enquanto engulo seco para testar a saúde da minha garganta,
ouço um som peculiar que interrompe o silêncio lá fora.
É a buzina do motociclista pago pela associação de moradores
para fazer a ronda noturna pelas ruas do bairro. Ao longo do percurso, vai
cruzar com outros motociclistas portadores de mochilas cúbicas e multicoloridas
a caminho de onde a fome dos confinados os aguarda. Aliás, nestes dias de
trânsito reduzido, a orquestra formada pelos escapamentos das motos, em seus
mais variados tons, domina o pouco que a cidade anestesiada produz de barulho.
Por falar em barulhos e sons, é coincidência que logo agora eu ouça gritos,
gritos de criança.
Vou até a janela e vejo lá fora a figura de um homem de
cabelos brancos: um idoso, conforme linguajar técnico que define um dos componentes do grupo de risco. Ele está envolvido por uma áurea de descuido e
teimosia. Primeiro, pelo simples fato de perambular pela rua. Segundo, porque
está sem camisa, mesmo em meio a uma garoa fina que começa a se intensificar. E
terceiro, porque desobedece aos gritos da criança que chama por ele. Sim, um
menino, provavelmente neto do idoso, implora para que ele volte para a casa.
Hipnotizado pela curiosidade, o idoso segue na direção de um outro foco de
barulho, que logo identifico como uma briga.
Não consigo ver o lugar da rua onde a confusão se desenrola.
Tenho a visão obstruída por um pequeno prédio em construção. O que me resta
então é me orientar pelas informações sonoras. Há as vozes que vociferam
insultos e também as que tentam esfriar os ânimos. Muitas são as pessoas
envolvidas na briga, a julgar pela variedade dessas vozes. Uma delas é que me
chama mais a atenção. Alguém, de um modo choroso, grita repetidas vezes: me
solta, me solta, me solta. No meu campo de visão, surge uma mulher.
Provavelmente filha do idoso, ela o puxa pelo braço como se o resgatasse de um
ambiente radioativo. Enquanto isso, as vozes vindas da contenda continuam
ecoando, especialmente aquela que grita: me solta, me solta, me solta.
E a briga ainda persiste por uma duração exageradamente
anormal até para padrões de quem tenha quilômetros de diferenças a acertar. Os
que participam dela ignoram a chuva, a aglomeração e o perigo do contágio.
Talvez queiram prolongar a briga indefinidamente. Para sempre, se pudessem.
Talvez a façam perdurar como meio de fingir que ainda estão livres, como meio
de se agarrar desesperadamente a um jeito de viver que acabou. Vejo o
motociclista vigilante parar a moto para observar o tumulto. De longe. E ouço
mais algumas vezes a pessoa que grita chorosamente: me solta, me solta, me
solta. Desconfio que há algum tempo já a deixaram de segurar.
Livros do autor: Viva Ludovico A vida é um sorvete derretido
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