É um mecanismo rápido e escandaloso. A porta se abre sem a
menor cerimônia, deixando à mostra um retângulo vertical e escuro. Lá de
dentro, uma imagem vai ganhando forma conforme se aproxima da luz exterior.
Bermuda, regata, sandálias de couro, o sujeito desce os três degraus
escorando-se nas alças de metal grudadas cada qual em uma metade da porta
retraída. Ao pousar um dos pés no chão, ele se desequilibra, a queda não é
espalhafatosa, o homem vai ao chão como se estivesse deitando para dormir.
Qualquer um sabe que nesta vida é toda hora que se cai, mesmo
assim ele está boquiaberto de surpresa, o que o faz vasculhar, ainda no chão, a
causa do incidente, não demorando a constatar que o ônibus parou com as rodas
traseiras bem em cima da curvatura de um quebra-molas. Ao se levantar, o homem
olha para os lados e se depara com duas testemunhas da cena estapafúrdia, aí é
que, além de embasbacado, ele também fica constrangido, e o constrangimento,
chave de uma porta infernal que abate os sensíveis e inflama os furiosos,
parece ter acendido nele a necessidade de protestar. Viram o que esse cara
fez?, pergunta às duas testemunhas, buscando apoio para a sua causa de
rebaixado ao raso do chão. Em seguida, posiciona-se na direção em que avista a
parte da frente do ônibus. Ao erguer os braços com as palmas das mãos viradas
para cima, faz questão de se mostrar reivindicador de alguma satisfação, de
algum pedido de desculpas, o que poderiam dizer dele se não desse vazão à
revolta?
Desde a queda até agora, é provável que o motorista esteja
assistindo a tudo pelo retrovisor. Pois então este é o momento em que ele sai
da porta dianteira do ônibus para inspecionar a situação. Enquanto caminha,
suspende a calça social de um jeito que é como se o cinto fracassasse em sua
função de evitar a frouxidão. Ele se põe a caminhar com movimentos calculados.
A princípio, mantém-se inexpressivo, mas isso até quando lhe é atirada uma
descompostura: não tem cuidado com os outros?, questiona o homem
recém-estabacado.
Eis mais uma vez o danado do constrangimento agora muito
visível no comportamento de quem acabou de ter o profissionalismo contestado. O
motorista fecha a cara e continua a andar na direção de seu contendor, que
também caminha rumo ao confronto. O plano de fundo é o ônibus parado com a
traseira levemente inclinada para cima, suas janelas de vidro fumê escondem os
passageiros certamente apreensivos sobre o que está para acontecer aqui do lado
de fora.
Quando estão muito próximos, cara a cara, ambos param ao
mesmo tempo, é como se algum obstáculo se erguesse à frente de cada um dos
dois. Por efeito de algum acordo implícito, eles então dão meia volta e se
afastam. Após darem dez passos, em vez de se virarem um contra o outro, seguem
cada qual seu rumo. Um duelo não é feito por oponentes que decidem relevar.