Certa vez ouvi dizer que Bob Dylan, em turnê por São Paulo,
recrutara o chefe de sua segurança para acompanhá-lo durante uma pequena
extravagância: caminhar, madrugada afora, de uma ponta à outra da Avenida
Paulista.
Confesso que também já fui de dar meus passeios pela
madrugada na ingenuidade de querer testemunhar a cidade disfarçada por uma
versão mais intrigante de si mesma. Mas é de se presumir que eu, não sendo Bob
Dylan e muito menos contando com um aparato de segurança pessoal, sofresse as
consequências de andar por aí numa espécie de expedição ao lado oculto da lua.
Portas descidas pela metade, os bares expulsavam seus últimos
frequentadores. Havia silêncio só interrompido pelo estardalhaço de uma ou
outra moto acelerando ao longe. Fazia frio, o que explica em parte o casaco
trajado pelo homem de mochila que aguardava a minha aproximação para pedir
ajuda em favor do sustento da família. Neguei por achar imprudente sacar minha
carteira naquelas circunstâncias. E dobrei a esquina.
Enquanto andava, percebi que, paralelo a mim, o homem de
mochila me acompanhava do outro lado da rua (agora me veio à mente uma cena do
filme De olhos bem fechados, de Stanley Kubrick). Éramos as únicas pessoas que vagavam
pelas intermitências de claro e escuro formadas conforme percorríamos as
distâncias entre os postes. Lembro ter pensado alguma maneira de recusar outro provável
pedido de dinheiro quando então o homem de mochila, numa manobra imperceptível,
surgiu à minha frente e com uma das mãos agarrou muito rapidamente a gola da
minha blusa de frio, olhos brilhando na penumbra. Acabou a brincadeira, me dá o
dinheiro, ele esbravejou enquanto mexia a outra mão encoberta pelo casaco. Por
ter acabado a brincadeira, entendi, claro, que agora entregar o dinheiro não
admitia alternativa consensual. Tive ainda o espírito de tirar todas as notas da
carteira para depois devolvê-la ao bolso de trás da calça. Ao pegar as notas de
dinheiro, o atacante precisou me largar e foi aí que aproveitei para correr, ocasião
em que escutei ele gritar: Peraí, me dá o celular também. Não obedeci,
continuei correndo até quando achei que deveria me virar para conferir. Nenhum
sinal dele. Sempre tive quase certeza que a mão por debaixo do casaco não
segurava arma alguma. Às vezes prefiro achar que não. Às vezes prefiro achar
que sim.
Uma história puxa a outra e agora me lembro da vez em que,
saindo da rodoviária, fui surpreendido por um rapaz que se ajoelhou aos meus
pés e, com a agilidade de um mecânico que troca os pneus de um carro de corrida,
começou a esfregar um produto cremoso nos meus sapatos, ignorando os apelos de
que eu não queria o serviço, de que eu estava com pressa, de que não havia
razão para que meus sapatos rotos fossem engraxados. Cheguei a ensaiar uma
retirada brusca, mas o rapaz, prevenido para esse tipo de reação, gritou de um
jeito que parecia que eu era um trambiqueiro disposto a não honrar a dívida.
Ele, enfim, terminou o trabalho indesejado e se postou à
minha frente. Estendi uma nota de cinco reais como sinal de rendição. Ele então
negou, dizendo que seu serviço custava vinte reais, contestei, discutimos. Mais
uma vez cedi e lhe entreguei uma nota de vinte reais. Ele pegou o dinheiro,
mas, com cara de impaciência, me advertiu que o preço era vinte reais cada
sapato. Tornava-se cada vez mais indignante me demorar naquela situação, ainda
mais porque outro rapaz, também carregando apetrechos de engraxate,
aproximou-se de nós e, reforçando o coro do colega, passou a me repreender
seguidas vezes: anda, dá o dinheiro do cara, é o trabalho dele. Eis o ardil da
coisa, qualquer um que testemunhasse a cena naquela altura me teria como
inadimplente arrogante. Pois bem, entreguei quase todo o meu dinheiro como
passaporte que me pudesse fazer escapar e por fim vi os rapazes se afastarem
enquanto nos despedíamos com saudações impublicáveis.
De fato, isso de uma história puxar a outra, de um assunto
ter a ver com outro, leva à recordação dos tempos em que, conferindo o extrato
de cobrança de um empréstimo, constatei que os juros praticados pelos bancos
brasileiros são abissalmente maiores do que a média mundial.
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