A obra na fachada da casa era em tudo avessa ao manual de
produtividade frenética dos dias de hoje, nem tanto porque quase nunca se notava
avanço significativo da quantidade de azulejos estampados em figuras
geométricas que revestiam a parede, mas mais por causa do que os pedreiros faziam
em concomitância com o trabalho, já havia presenciado animados debates sobre
política e futebol, já os havia ouvido cantar em coro uma música gospel de
refrão tocante e até já os havia visto dançar, nem mesmo os montes de areia,
pedra e cimento espalhados pelo chão atrapalhavam a evolução da coreografia
malemolente. Mas que isso não seja interpretado como procrastinação, ao menos
não uma procrastinação clandestina, afinal o próprio dono da casa não raro
também participava desses acontecimento de, digamos assim, distração entrelaboral.
Em determinado período, ao passar em frente à obra, eu me
deparava sempre com o mesmo pedreiro que, recostado junto à fachada em reforma,
segurava um copo americano com café pela metade (como eu sei que não se tratava
de um refrigerante de cola? – aqui uso esse termo esquisito, de modo a deixar claro
que não faço propaganda, que audácia!, para o maior conglomerado de bebidas do
mundo – Bem, primeiro porque ninguém que beba refrigerante recorreria àqueles
movimentos circulares tão tipicamente praticados para misturar o açúcar
acumulado no fundo do copo. Segundo, porque ninguém que beba refrigerante
recorreria àqueles movimentos circulares tão tipicamente praticados para esfriar
o líquido preto). A coisa se tornou tão frequente que até começamos a nos
cumprimentar, o maneio de cabeça representava o fato de que nos conhecíamos
pelo tempo daqueles três segundos diários. E então houve a ocasião em que,
diferente do habitual, ao me ver, ele reagiu erguendo bem alto o copo de café,
o que entendi ser um brinde aos trâmites desapressados, à divagação em meio ao
caos, ao intervalo contemplativo. É como se, ao levantar aquele copo, me
advertisse do mesmo jeito como um dia já o fizera o escritor Ambrose Bierce: Companheiro,
a pressa é o ritmo dos trapalhões.
Faz muito tempo que não passo pela rua que é endereço da casa
cuja fachada está em reforma. Pois então hoje, um domingo, decido conferir se a
obra enfim terminou. Ao dar de cara com a casa, constato que na parede ainda há
espaço para encaixar muitos azulejos, há montinhos de pedra, areia e cimento
num canto e também há um andaime instalado na parte alta da fachada. Ainda bem.
Clique aqui para conhecer o livro de crônicas do autor
Clique aqui para conhecer o livro de crônicas do autor