Raio-x. Ultrassom. Mamografia. Palavras em tipografia. Letras
metálicas e justapostas na fachada de um muro, de trás do qual a moça surge aos
saltos, no estilo Saci-Pererê, um dos pés – pendente, descalço e inchado – é a
causa da careta de dor, não uma dor qualquer que caiba em algum relatório
anatômico, falo de uma dor mais apropriada a abordagens poéticas e, sendo
assim, tomando emprestado o que já disse o poeta, esta é a dor que deveras
sente.
Um braço a envolve pela cintura. Quem exerce a função de
muleta de carne e osso é um homem mais velho e mais baixo que ela, talvez o
gesto funcione como solidariedade, mas na prática demonstra pouca serventia, a
moça continua a ter dificuldades para se movimentar, só o que conseguiu avançar
aos pulinhos foram míseros metros a custa do esforço estampado no rosto
contorcido de padecimento. Aí então acontece a surpresa. Impulsionado por uma
ideia providencial, o homem ajusta o corpo e num movimento de muita agilidade
pega a moça nos braços e passa a carregá-la, sem que ela, descontado o
constrangimento inicial, se oponha à iniciativa.
Ao tomar para si uma missão tão vistosamente hercúlea, ele não
transparece incômodo algum, não bufa de cansaço, não cora de acanhamento, o que
parece sentir é uma espécie de regozijo heroico. E a composição à la Pietá vai
abrindo alas entre a curiosidade das pessoas, que diminuem a marcha, sendo
fácil adivinhar que muitos já têm os dedos coçando de vontade de deitar o
celular na posição em que a cena inusitada possa ser enquadrada, mais um tema para
alimentar o trânsito faminto de redes e grupos.
Eles vão se afastando em direção aos fundos de uma rua.
Quando estão na iminência de sumir de vista, ela recosta a cabeça nos ombros
dele e chega a fechar os olhos. Quem quer que consiga de algum modo gravar este
instante, seja na memória de um celular ou na boa e velha memória da cabeça,
tem amostra de como funcionam os dias, esses emaranhados de tempo intercalados
de períodos de suspensão da dor, a dor que ela deveras sentiu, sente e sentirá,
mas não agora.
Crônicas anteriores:
O ato de enxugar as lágrimas com o dorso da mão
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Honra ao Mérito
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