O corpo está coberto por um lençol que, embora esfarrapado, faz
muito melhor as vezes de lona fúnebre. Desse jeito é até possível vislumbrar, não
sem algum esforço de licença idílica, o descanso do sono definitivo. Estranho é
que situações assim estão sempre a serviço do congraçamento: os vizinhos se
reúnem pela curiosidade e acabam aproveitando a ocasião para colocar assuntos e
pendências em dia. E já são muitas as pessoas que assistem de camarote à
exposição sinistra, só o que as separam da cena é uma fita esticada entre um
poste e a grade de um portão.
Aqui não existe choro, não existe vela, mas também não existe
o nome dela gravada na fita amarela. As cores de sempre: vermelho, azul, verde,
ou as mais exóticas: âmbar, bordô, ébano, são milhares, qualquer uma delas
poderia ser escolhida para tingir as fitas que delimitam a cena de um crime,
mas inventaram de escolher logo a cor amarela, e aí fica essa coisa de associar
o panorama de vida ceifada à lembrança de Noel Rosa, o que, convenhamos, não
deixa de ser outro crime. Ou talvez uma heresia, mas deixa estar que isso se
expurga fácil, basta ouvir “Com que roupa?”, “Conversa de botequim”, “Feitio de
oração”, “Três apitos”, “Palpite feliz”, e então logo se desfaz a malfadada
associação.
Policiais e bombeiros surgem por entre a aglomeração, passam
por baixo da fita e vão lidar com o corpo, um desalento transparecerem estar
tão habituados. É então chegada a hora da remoção, e a partir daí faz-se um
silêncio instintivo. Repetitiva, abafada, prelúdio de um cortejo espetaculoso,
dá para ouvir ao fundo a música do caminhão de gás que percorre as cercanias. A
fita, esgarçada, é deixada largada no local. Depois que o corpo é levado
embora, a rua é devolvida a uma normalidade avariada. As pessoas se dispersam,
ainda a elas, enfim, resta cuidar de suas vidas, há quem faça o sinal da cruz e
há quem, ó insossa esperança, levante a cabeça aos céus.
E é subir os olhos para perceber que elas também estão lá em
cima. Fitas amarelas balançam penduradas como se fossem chuva dourada
interrompida pouco antes de cair no chão. A rua onde uma pessoa foi morta está
toda decorada para a Copa do Mundo.