O embate tem dia, local e horário certos para acontecer.
Todos os domingos pela manhã, quem passa por um dos acessos à feira livre
assiste a um conflito que já perdura por meses, é bate-boca pesado, duelo de impropérios, arranca
rabo digno das óperas-bufa mais estridentes.
Um dos oponentes tem porte atarracado e é comum ser visto
portando um pedaço de pano que não aparenta maior utilidade senão a de um
símbolo. O outro nunca está sem seu boné vermelho e maltrapilho, também é
atarracado, mesmo tamanho, mesmo peso, não há dúvida de que os dois
pertenceriam à mesma categoria de qualquer modalidade de luta. Nunca é possível
precisar de quem é a iniciativa do imbróglio, mas a coisa sempre começa mais ou
menos assim:
– Você sabe que eu preciso trabalhar, tenho uma família pra
sustentar, não sou moleque – ao que o outro retruca:
– Então faz o seu trabalho direito, eu também tô trabalhando.
São palavras ditas em exaltação, em tom suficientemente
escandaloso para atrair atenções, e a partir disso uma pequena plateia se junta
na expectativa de presenciar as vias de fato, nunca há de morrer em cada um de
nós o aluno de ginásio useiro e vezeiro em incitar a briga dos colegas no final
da aula.
As pessoas dentro de seus carros também são acometidas pela
curiosidade irresistível de querer se atualizar sobre as querelas urbanas,
diminuem a marcha, passam devagar quase parando, e é aí que os dois criadores
de caso deixam de lado a encrenca e partem para abordar os motoristas,
oferecendo-lhes as vagas de estacionamento pertencentes aos respectivos territórios
que a cada um deles cabe administrar, pedem contribuições, fazem boa grana,
exercitam uma dessas invenções a que se deve homenagens pelo contorcionismo
mirabolante, alugar pedaços da rua é um jeito muito nosso de empreender com a
coisa pública.
Não foi tão surpreendente assim, já havia no ar razões para a
suspeita, um trejeito performático aqui, um exagero inverossímil acolá, pois
então quem quiser conhecer a verdade é só chegar à feira livre mais cedo do que
o de costume, e então, com a rua ainda vazia, lá presenciará o flagrante, os
dois flanelinhas estarão absortos numa conversa animada, trocarão gargalhadas
desopilantes, coisa de parceiros mesmo, e isso momentos antes de começar a
costumeira discussão.
A revolta não é tanto por estar revelado o artifício
utilizado para fisgar bisbilhotices. Também não é o caso de se decepcionar com
o fogo brando, quase fátuo, que incendeia o circo. O problema é que daqui para
diante nem a repugnância, até então essencialmente indisfarçável, está isenta
de ser dissimulada.