Pernas estendidas no chão, uma sobreposta à outra. É só o que
dá para ver já que o restante do corpo está escondido atrás da pilastra que
sustenta o viaduto, uma pilastra enorme, apta a ocultar cabeça, tronco, membros
superiores e inferiores, toda a composição, mas as pernas expostas servem ao
propósito de delimitar território, marco da ocupação humana no subterrâneo da
civilização.
Ali é mesmo um lugar onde o metro quadrado deve ser
valorizado, o terreno é quase completamente plano, há ampla cobertura contra
sol e chuva, não se vê qualquer mancha de umidade nas estruturas do concreto
armado e o mais importante: a privacidade é item garantido, tirando um ou outro
olhar curioso, não se trata de cenário que atraia atenções contemplativas, interesses
expropriatórios ou visitas demoradas.
Do tanto que se deu atenção à questão das pernas de fora,
quase passou em branco o detalhe não menos relevante em que uma bicicleta e um cão
ocupam o fundo da cena. Não há tranca, corrente, cadeado ou qualquer apetrecho útil
a resguardar a propriedade da bicicleta, que repousa encostada no paredão
decorado por pichações as mais diversas, já quanto ao cão, em seu pescoço enrola-se
a corda de comprimento generoso, tão extensa que forma rolos no chão, um
cuidado pensado para amenizar a sensação de aprisionamento, e o cão aproveita
do jeito que dá, vai farejando a área até os limites em que a corda estica, e
nessa sanha de exercitar o olfato encontra dois pés descalços, demora-se em
perscrutação e depois, orelhas em pé, olha na direção do que a pilastra encobre,
ângulo exclusivo a ele. As pernas se mexem, e isso é um sinal que tranquiliza o
cão, está tudo bem, orelhas para baixo, faro retomado.
Olhando melhor, vê-se que são pés desgastados, pés de
viajante, agora já não faz sentido supor que as pernas delimitem o território,
pode ser que não sejam daqui e também de nenhum outro lugar, talvez amanhã elas
estejam girando para bem longe os pedais da bicicleta, acompanhadas pelas patas
do cão em correria.
Mas
por hoje, em meio ao barulho do trânsito, a pilastra é o cobertor curto que deixa
as pernas à mostra. O que a exposição delas significa é o aviso de que a pessoa
parcialmente encoberta simplesmente existe.